segunda-feira, 28 de abril de 2008

Campanhas de Moçambique em 1895

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Ao terminar de ler a coletânea de cartas entre alguns dos representantes do processo colonialista, em Moçambique, no ano de 1895, registrados no livro "As Campanhas de Moçambique em 1895 - Segundo os Contemporâneos", com Prefácio e Notas do então ainda não ditador Prof. Dr. Marcelo Caetano, em 1947, fico com vontade de correr por algumas dezenas de temas. Mas ficarei apenas, e rápidamente, em três.

O primeiro, bastante na moda, é o exemplo vivo de que a língua é viva, pois se todas as cartas transcritas nas 400 páginas do mesmo, algumas mais formais, outras nem tanto, são claramente entendíveis, mas criaram algumas risadas ao meu filho de 11 anos quando lhe mostrei como eram escritas algumas palavras em português no Séc. XIX, português inclusive que tem o mesmo na sua grade escolar como matéria, e não o brasileiro, língua não existente, como é sabido. Sim, também tem na grade escolar a língua inglesa, mas não sei lhes dizer se os livros são didáticamente revisados por britânicos ou americanos.

Ainda assim não tive coragem de levantar com o miúdo, gúri, puto, piá, o tema "Acordo Ortográfico". Tive receio que o mesmo não viesse a entender que houvesse mais de uma forma de se escrever a mesma palavra na mesma língua e que existam pessoas que acham que ainda assim está tudo certo. Como explicar para ele que não é uma questão de termonologias ou de sotaques. É mesmo quase que fazer-lo acreditar que seria certo acharmos que para alguns povos lusófonos fosse ainda coerente se escrever farmácia com "ph" porque era assim que Camões escrevia.

Outro tema que acaba vindo à mente ao ler esta coletânea, é o ter registros que não foram os fundadores da Frelimo os primeiros, que de forma organizada, bateram de frente com as estruturas colonialistas portuguesas.
Não que seja esta uma novidade para ninguém. Mas que é interessante, senão importante, ler relatos reais que nos mostram que a luta armada contra o colonialismo em Moçambique não começou, como se gosta de apregoar, na década de 60, com a Guerra Fria, e somente por causa do apoio dos malditos comunistas que só vieram ao mundo para lixar com os portugueses e comer criancinhas.
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Outra questão muito interessante, é o que está registrado em uma das cartas de Aires Ornelas, talvez um dos mais ardentes defensores da luta armada contra os revoltosos liderados pelo Gungunhana, à sua mãe, onde conta, admirado, o que viu da organização e disciplina dos africanos. Dizia ele na sua carta em 14 de Agosto de 1895:
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"(...) espectáculo que presenciei nesse dia, espectáculo que bem poucos europeus têm visto e com certeza o mais extraordinário a que tenho assistido.
Pelas 9 horas da manhã, do mato que fecha...
(...)Lentamente se foi ela se aproximando de nós; pouco a pouco iam-se percebendo e distiguindo os vultos quando se partiu em 6 colunas, 2 delas muito profundas, ladeadas, cada uma, por duas mais pequenas. Eram as duas mangas de guerra dos Impafumane (homens altos) e Zinhome M'Choque (pássaros brancos), dividida cada uma em três troços (mabange) na força de perto de 3000 homens cada uma, ostentando toda a gala e a riqueza selvagem do magnífico traje de guerra vátua. Vinham armados só de cacetes, prova das suas intenções pacíficas, e, e toda essa imensa massa avançava para nós cercando a Residência sem ruído sequer, manobrnado com uma precisão e regularidade que fariam inveja a europeus. (...)
(...) Entre estes vinha o Gungunhana que conheci logo, apesar de nunca lhe ter visto retrato algum; era evidentemente o Chefe duma grande raça. Desse grupo adiantou-se um dos principais orando por bastante tempo, dando-nos as boas vindas em nome do régulo e da sua nação e terminando pela saudação vátua: bahete! que repetida pelas milhares de bocas que nos cercavam produzia o efeito duma descarga de fuzilaria. (...)
(...)Ao levantar-se fez-se de novo ouvir o estrondoso bahete! e formando outra vez as mangas em coluna , mandou-as entoar o canto de guerra. Aqui devia eu parar! Nada no mundo pode dar uma pálida idéia da magnificência do hino, da harmonia do canto, cujas notas graves e profundas vibradas com entusiasmo por 6000 bocas faziam-nos estremecer até ao íntimo. Que majestade, que enrgia, naquela música, ora arrastada e lenta, quase moribunda, para ressurgir triunfante num frémito de ardor , numa explosão queimante de entusiasmo! E à medida que as mangas se iam afastando, as notas graves iam dominando, ainda por largo espaço, reboando pelas encostas e entre as matas do Manjacaze! Quem seria o compositor anónimo daquela maravilha? Que alma não teria quem soube meter em três ou quatro compassos, a guerra africana com toda a acre rudeza da sua poesia?(...)

5 comentários:

Anônimo disse...

É frequente ouvir e ler que há pouca coisa escrita sobre a colonização portuguesa.

Quem passou a sua vida por alguma das colonias, sabe que existiam em todos os serviços públicos resmas e resmas de arquivos antiquissimos.

E quem viveu naquelas terras, tambem sabe que a "guerra do ultramar", (1961-1974), foi a única guerra com sentido nacionalista, influenciada internacionalmente, inclusive pela ONU, porque todas as outras guerras, que eram frequentes em todas as colónias, não passaram de revoltas tribais.

Todas essas revoltas estão registadas e todos os protagonistas dum lado e do outro são sobejamente conhecidos.

Não podemos confundir nacionalismos com tribalismos, porque infelizmente este está sempre latente.

Cumprimentos

Zé Paulo Gouvêa Lemos disse...

Sim, felizmente não é absoluta verdade a afirmação que existe assim tão pouca informação sobre a colonização portuguesa. Até aqui no Brasil se consegue alguma coisa interessante nas bibliotecas e sebos.

O que temos neste caso na definição de tribo? Uma estrutura social não ocidental? Que ainda assim ocupa espaços e se sentiu invadido como nação, mesmo que o ocidente os classificasse como tribos (e continue classificando)?
Aceitando-se o conceito ocidental de tribo como organização social, envolvendo etnias, organizadas militarmente, religiosamente e com as suas estruturas políticas, não fogem, dentro das suas próprias características culturais, de uma organização como uma nação na espinha dorsal nos moldes ocidentais. Por isso não creio que nos tempos das Campanhas em Moçambique de 1895 não houvesse um espírito nacionalista dos que aqui o senhor classifica de revoltosos.
“Desqualificar” movimentos, como os liderados por Gungunhana, colocando-os como simples revoltas sem sentimentos nacionalistas, é o mesmo que dizer que António Enes, Mouzinho de Albuquerque, e outros, não fizeram parte da história da colonização portuguesa em África. a mando do Reinado português, e sim andaram por lá de férias.
Obrigado pela visita e pelo proveitoso bate papo.
Receba também os meus cumprimentos,
Zé Paulo

Anônimo disse...

Zé Paulo tem razão quando fala no nacionalismo de Gungunhana: Se há alguem em África com legitimidade à sua nação (terra onde se nasce), são as velhas tribos africanas.

Tambem tem razão que qualquer Mouzinho, armado ou desarmado, ou qualquer um seu descendente, não passa de um elemento colonizador.

E qualquer imposição feita por europeus, tal como impor as fronteiras e uma lingua, não passa de um acto colonial.

Mas, Zé Paulo, só porque sei que você saiu de Moçambique, e penso que mal ou bem sabe que a guerra durou quase 20 anos, com armas do mais moderno, e que ainda recentemente explodiram paois militares, e quantos haverá para "explodir", mas como dizia, Moçambique podia ser a sua "nação", é que lhe quero dizer a minha convicção, que as independências em geral da África Subsariana, não passaram de um acto colonial, das grandes potencias e da ONU em geral, e que estas independências (neocolonialismo), tiveram e estão tendo efeitos tão nefastos para os africanos, que se podem equiparar, se não superar às escravaturas para as Américas.

Foram crimes cometidos em África de tal ordem, com estas falsas independências, que foram a "cereja em cima do bolo".

Só faço todo este esforço para alinhavar tantas linhas, porque se trata de àfrica lusófona e de alguem que saiu de lá.

Os meus cumprimentos

Zé Paulo Gouvêa Lemos disse...

Anônimo,
Primeiro não posso deixar de manifestar o meu contentamento de ser tratado pelo meu nome. Fica a conversa mais próxima. Com toda a certeza seria tão agradável quanto poder tratá-lo também pelo seu próprio nome.
De qualquer forma, mais importante que isso são as idéias que respeitosamente aqui trocamos.
Ainda assim, o tema abriu um leque que melhor tratado ficaria em um fórum, mas fico muito lisonjeado pelo esforço que fez para registrar as suas ponderações, motivado pelo o que aqui me (nos) disse.
Sobre as independências em África, em especial na região subsariana, terem sido um novo formato de colonização (neo-colonialismo) apoiado, inclusive, pela ONU, não vejo bem assim.
As independências tinham um foco revolucionário que nas suas execuções foi totalmente distorcido, e por isso acabou entrando água nas metas estabelecidas por quem lutou pela liberdade, igualdade e independência dos povos. E veja bem, por exemplo, que essa luta no caso de Moçambique não foram só dos envolvidos na luta armada via Frelimo e outras frentes, e sim, também, de grandes homens, fossem poetas, fossem jornalistas, fossem fotógrafos, fossem anônimos para muitos.
É evidente que a letargia das ditaduras colonizadoras e o que elas plantaram (ou principalmente deixaram de plantar e/ou podaram de evolução), acabou por ajudar em muito que precipitações de estruturas imaturas nas administrações de tenras nações se perdessem e invertessem os velhos erros da outra senhora por outros erros, e onde a corrupção acaba entrando como uma das maiores feridas, ferida esta comum em qualquer região sub-desenvolvida e administrativamente desestruturada.
Claro, que tenho que admitir (a ONU está inserida neste contexto) quando das independências destes países, em especial para nós os nossos lusófonos, estavam envolvidos em vaidades das Guerras Frias cheias de sangue quente nas veias dos governantes do planeta, em especial das grandes potencias de então, e os seu bonecos de chumbo.
Ou seja, entre os erros do passado e os que vieram depois, não queria nem uns nem outros, mas as independências não tinham mais como esperar e agora, há que trabalhar para cada vez mais se perceber melhoras contínuas para Moçambique e as restantes ex além mar.

Cumprimentos,

Zé Paulo

Anônimo disse...

Zé Paulo,

O meu nome ser Manuel ou Joaquim, seria um anónimo na mesma.
Como tal prefiro identificar-me dentro do contexto:

Em África, fui, há muitos anos, denominado de "colono, colonialista, imperialista"; durante 5 anos, fui" portuga" em São Paulo, Rio, Minas e Salvador; Numa aldeia beirã de onde saí com 18 anos, passei a ser denominado de "retornado, emigrante"; no Funchal fui alcunhado de" Cubano", finalmente em África novamente, durante uma dezena de anos, fui chamado de cooperante.

Neste momento chego a ser alcunhado de "saudosista dos impérios"

Como existem milhares identificados comigo, é melhor considerar-me um "anónimo com assento agudo".

Sobre um forum, dificilmente eu tomaria parte, pois imediatamente aparecia gente, de portugal principalmente, que de África conheceu os 24 meses de guerra, que eu tambem fiz, e isso era muito curto.

Sobre revolucionários, intelectuais, poetas etc., de África em geral, dão-se muito bem com as respectivas familias, na linha de Cascais e outras cidades do sul da Europa, e agora já usam muito o Rio e o Nordeste Brasileiro.

Sobre os governantes africanos, são mais estranhos aos "seus povos", devido ao pouco tempo que permanecem em África, do que era o ex-governador colonial Rebelo de Sousa para os Moçambicanos.

Sobre a inevitabilidade das independências, naquele momento, anos 60, e 70, com o mundo dito civilizado apoiando e armando até aos dentes, fascinoras tipo Mobutu, Bokassa, o caso de Angola, o mundo inteiro, inclusive Portugal, enviando armas para três exercitos, MPLA, UNITA, FNLA...sobre essa inevitabilidade, só mesmo quem não assistiu ao antes, durante e depois, é que pode concordar.

Como vi ao vivo a FAO a OMS, a UNICEF, fazendo "turismo" em África, no meio das maiores misérias, com a maior tranquilidade, achando normal apoiar governantes do tipo que mencionei, aprovo em teoria a ONU, mas reprovo-a totalmente na prática dos seus funcionários.

Como de política não percebo nada, limito-me a comentar o que vi e que passou perto de mim.

Zé Paulo, enquanto for mencionando África e Brasil, continuarei a ser seu leitor

Cumprimentos