sexta-feira, 4 de maio de 2007

Liberdade de Imprensa



3 de Maio é dedicado à Liberdade de Imprensa. Lembrei-me de também aqui homenagear a Imprensa, uma das maiores ferramentas das democracias do mundo, nas suas manutenções ou na luta pela busca das mesmas, neste caso em especial a luso-moçambicana transcrevendo duas crónicas das décadas de 50 e 60 do jornalista Gouvêa Lemos (1924-1972).
Não custa relembrar os mais desmemorizados a censura da ditadura "salazarista / caetanista" em que se vivia neste período. Isto justifica, inclusive, edições particulares por conta e risco do(s) jornalista(s) que tinham uma coluna vertebral que não se envergava.


OS BEATIFICOS CRETINOS
[In: Notícias da Tarde, Lourenço Marques, ano VI, nº. 1:694, 13 de Dezembro de 1957, p. 1 e 5]

Passei dois anos fora e verifico hoje, contristado, que não melhoramos nada. Continuam a medrar os miseráveis sujeitos, que não se aguentando em terreno livre, por estupidez, por ignorância ou por inaptidão, se escondem entre o capim e, rastejantes, nos mordem as canelas, com o veneno de certas acusações.
Já de pequeno me vem este asco por tais espécies de subfauna, que sempre nos rodeiam e espiam. Embirrava, profundamente, na escola, com os maricas, useiros e vezeiros na queixinha à senhora professora...
E afinal quando nos corrigiremos - melhor quando se corrigirão esses crápulas do vício de ver inimigos em todos quantos não entendem bem ou porque têm idéias e cultura ou mais desassombro, mais valentia moral ou ainda - simplesmente - são menos servis, menos sabujos, menos oportunistas, menos cínicos, menos inferiores na escala dos valores humanos?
Continuamos na mesma tristíssima situação, que permite às lagartas comerem à mesa do banquete e chegamos até ao ponto de um infeliz despeitado qualquer distilar o pus dos seus despeitos infectados, guardando um covarde anonimato, característico de tais exemplares, para se vingar de colegas de Imprensa - ou ex-colegas - indo acusá-lo nas colunas de um semanário da Metrópole, conhecido pela sua coragem e galhardia. Neste ponto devemos lamentar que um vulto da envergadura do Prof. Jacinto Ferreira, que tanto admiro, tenha consentido no desaire, que põe em cheque o seu Debate, já que a garrafada saiu sem nome do mésinheiro responsável. Devo declarar que não me enraivece nada não saber quem é o indivíduo. O que posso garantir, sem medo de errar, é que o fulano deve estar bem - na vida prática. Deve singrar. Não tenho nada com a história, pessoalmente, mas entendo que todos os que escrevem em jornais temos obrigações de solidariedade, uns com os outros - e o dever de colaborarmos na manutenção da higiene moral e social do meio em que vivemos


O MELO DO "NOTÍCIAS"
-- COMO SÓI DIZER-SE
Nas suas "Folhas Perversas" do último Domingo, Guilherme Judas de Melo, o Melo do "Notícias", como sói dizer-se - como sói dizer o Melo - atendeu a encomenda de se meter com o ‘Notícias da Beira’. Forçado ele foi, com certeza, pois não contando a coragem nem o desassombro entre os seus trunfos e sabendo ele bem o vespeiro em que bulia, só por um sombrio pavor que alguns lhe conhecem faria o que fez. Foi pegar de mau jeito numa página de Poesia organizada por uma colaboradora deste jornal em homenagem a Fernando Pessoa e numa discutível impropriedade das ilustrações escolhidas para os poemas farejou traições ao Poeta e traições à Pátria, pretendendo, em vão, mais do que colocar a senhora em situação crítica, atingir os ‘dirigentes e responsáveis" deste jornal, "que por ele responderão’, como não se esquece de ameaçar.
Antes de mais, o que torna especialmente descarada esta atitude é o facto de vir falar das responsabilidades que terão os dirigentes doutro jornal, quem, precisamente nunca foi capaz de as assumir no seu. Conhecido pelos seus antigos ou actuais colegas e subordinados por uma proverbial incapacidade para chefiar, dirigir e orientar, chefe de Redacção desrespeitado ou secretário-geral irrespeitável, atreve-se o Melo - eu conheci-o - a oferecer autoridade e a exportar disciplina...
‘Notícias da Beira’, cuja posição perante os problemas fundamentais da actualidade portuguesa e da realidade ultramarina é bem conhecida e resulta claramente duma firme orientação superior - que até a mim transcende, quanto mais a ele - não requer nem consente observações dum invertebrado escriba fugidio como o Guilherme de Melo. Primeiro, o sujeito descobre um soldado, possivelmente desertor, num estafado campista, descontraído, estendido na plataforma rochosa duma qualquer montanha, visivelmente gozando o ‘prazer de não cumprir um dever’.
Depois, avulta a ligeireza com que se apossa, em sôfrego exclusivo, do espírito de Fernando Pessoa, que manipula por receita, metendo entre balas ‘a sua mensagem única e bem clara’, para nos afirmar que o ‘menino de sua mãe’ nunca poderia ser um ‘negro, asqueroso, imagem perfeita do bandoleiro a monte, arrancado aos pântanos de um Vietname". Aqui ficamos em dúvida sobre a ordem de razões em que o Melo se funda para considerar bandoleiro um negro, certamente americano, que se bate no Vietname.
Mas ele lá explicará isso a quem deve. Por outro lado, verificamos que tem da Pesia uma idéia tão ampla e da liberdade criadora do Poeta um conceito tão aberto, que, autor de versos e ganhador de prémios literários, assim lhe compreenderemos fácilmente a obra pífia de poetinha pseudo-lírico. Preocupado com os ‘poetastros que por aí pululem convencidos que ‘isto’ de se fazer poemas à Fernando Pessoa não custa nada’- e ele sabe o que custa -, o Melo tenta pôr-se de fora, quando, nisso mesmo que diz, poetastro ele é, poetastro se confirma. Ora, de que tenta, afinal, acusar-nos o Melo? De temos albergado em página deste jornal o ‘mais revoltante e indigno achincalhamento do que por este nosso Ultramar toda uma juventude generosa e magnifica tem vivido, desde há sete anos feitos, em sacrifício e holocausto", achicalhamento que seria constituído pelas tais ilustrações que ele reprova e a nossa colaboradora escolheu para 2 poemas de Pessoa. Uma delas, então, ele acha especialmente revoltante, porque se trata dum homem de cor, a figurar o ‘menino de sua mãe’. E diz que ‘aquela coisa ali arremessada como um escarro para aquela página’ não pode servir, sequer, para ‘englobar na mensagem belíssima e humaníssima que o poeta contém os nossos irmãos negros’. Porquê, não explica. E talvez não possa faze-lo, porque ninguém lhe garante que tenha sido negro aquele corpo queimado pelo fogo da guerra, que ‘jaz morto e apodrece’, e, de certo, tinha mãe. Mas faz-nos pensar em que o Guilherme de Melo de ‘As Raízes do Ódio", se não anda a preparar-se para alguma sessão pública de auto-crítica, ocupa-se com fervor em construir a sua retratação. Sobre as raízes do ódio, no seu romance, dizia o João Tembe (que não poderia ser o filho da sua mãe da ilustração revoltante) : ‘Mas também não posso esquecer que essas raízes, foram a violência e a injustiça, foram a destruição e a morte que as plantaram. Elas não germinaram espontâneamente no coração de cada um de nós. Alguém nos atirou a semente do ódio para o coração, alguém fez germinar essas raízes. Ah! Não senhor doutor, elas não germinaram espontâneamente nos nossos corações. Como impedir agora que a planta se desenvolva livremente e que a árvore frutifique? Como? Como senhor doutor?’ e respondia-lhe o doutor Santana (esse podia ilustrar o poema, que era alvo e louro) : ‘Compreendo-te, João Tembe,. Compreendo tudo o que sentes, tudo o que pretendes demonstrar. Sei tudo isso. Ao mesmo tempo que sinto que uma nova África começa a surgir. E nós estamos em África. (...) E é por essa África nova que todos nós - eu tanto como tu ou o António Manuel, repito-o - precisamos de lutar. Mas lutar com amor e confiança entre os três. Só assim valerá a pena Deus nos ter dado esta maravilha rara de vivermos a nossa existência precisamente na altura em que a Humanidade assiste a essa aut6entica viragem histórica: a surgir dessa nova África!’
Pois disto escrevia o Melo entre 1960 e 1962, já depois de terem começado a contar-se os tais sete anos feitos, e publicava há uns 3 anitos, quando começou a ir conviver com os soldados ao Norte, como diz, onde combatem, como confessa, o ‘João Bazenga ou Fabião Souquiço’, ao lado dos ‘Zés Marias e dos Augustos e dos Antónios’. Quando seria, pois, sincero, o Guilherme de Melo? Então, cantando as rubras manhãs duma África nova? Ou agora, arrancando, a pedido, um ‘apartheid’ poético da ‘Mensagem’ de Pessoa? Eu digo-vos, porque estou certo disso, que ele não foi sincero então nem é sincero agora.
Então, ria-se a escarnecia de todos os conflitos que lhe deram tema ao romance; agora ele ri e escarnece da guerra no Norte. Sim,: agora, ele ri e escarnece dos dramas e das dores, dos sacrifícios e dos feitos que trata nas suas crónicas de campanha, com farto chorrilho de lugares-comuns e ‘hinos alevanttados ao jovem Soldado que morre pela Pátria nos planos longínquos’.
Fazendo dessa guerra a sua coutada jornalística, nela se escuda contra sustos profissionais e riscos de desemprego, ao mesmo tempo que colhe farto material para as suas graçolas e historietas de humor negro, exactamente criadas a partir do que mais respeito deve merecer a todos nós. Enquanto isso, no noticiário e até na escolha de fotografias de actividades militares, ele trata a guerra do Norte à luz dos seus problemas sentimentais. Não foi sincero nunca, por que havia de ser agora? Reagindo a esta acusação, que não temo fazer, porque não temo provar, ele há-de erguer a voz com tremidos hipócritas e dará soquinhos na mesa para afirmar que o ataco por ele defender os sagrados interesses da Nação, as heróicas Forças Armadas, a permanência de Portugal em África. Com que moral e de que ponto de vista o fará? Com base na sua prosa oficial domingueira ou nos chilreios sarcásticos com que, entre amigos, a contradiz?
Quase no fim das suas ‘Folhas’ de anteontem, o Guilherme tem um laivo daquele remorso que levou o Iscariotes à forca e escreve: E dir-me-ão, ainda, que é muito feio armar-se em denunciante e menino queixinhas’. Que tolice. Ninguém vai dizer que está a armar--se, pois toda a gente sabe que é. Denunciante, no pior sentido. Que se vinga, com intrigas odiendas e queixas sinistras, das suas frustrações. Que à falta de ascendente moral sobre os seus inferiores hierárquicos, os castiga com falsas denúncias. Fecha com chave de ouro, o Melo do ‘Notícias’, erguendo de súbitos seus ais sentidos ‘por pensar que, numa altura em que tanto bradamos pela necessidade, cada vez maior, de uma crescente liberdade para a Imprensa a troco de uma, naturalmente, também cada vez maior responsabilidade, demos assim tão triste conta de nós, com brincalhotices deste jaez que a ninguém aproveitam nem dignificam’. E já prevê, como quem pede: ‘E, depois - aqui dél-rei!...’
Aqui, está a ser coerente. Bem sabe ele que o seu próprio caso de jornalista é um fenômeno só possível em certas condições especiais. Ele sabe que não resistirá à água corrente da tal liberdade responsável. Ele sabe que é uma flor do pântano.
Por Gouvêa Lemos
Edição particular para oferta - 09/12/68

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